segunda-feira, 2 de junho de 2014
De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso, Por Eduardo Galeano
Dia
após dia, nega-se às crianças o direito de serem crianças. Os fatos, que zombam
desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata as
crianças ricas como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o
dinheiro atua. O mundo trata as crianças pobres como se fossem lixo, para que
se convertam em lixo. E as do meio, as crianças que não são ricas nem pobres,
os têm atados ao pé do televisor, para que desde muito cedo aceitem, como
destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que
conseguem ser crianças.
Os
de cima, os de baixo e os do meio
No
oceano de desamparo, se alçam as ilhas de privilégios. São luxuosos campos de
concentração, onde os poderosos somente se encontram com os poderosos e jamais
podem esquecer, nem por um instante, que são poderosos. Em algumas das grandes
cidades latino-americanas, os seqüestros são costumeiros, e os meninos ricos
crescem encerrados dentro da bolha do medo. Habitam mansões amuradas, grandes
casas ou grupos de casas rodeadas de cercas eletrificadas de guardas armados, e
estão dia e noite vigiados pelos guardas-costa pelas câmaras dos circuitos
fechados de segurança. Os meninos ricos viajam, como o dinheiro, em carros
blindados. Não conhecem mais que de vista, sua cidade. Descobrem o metrô em
Paris ou em Nova York, nas jamais o usam em São Paulo ou na capital do México.
Eles
não vivem na cidade onde vivem. Para eles é vedado o vasto inferno que lhes
ameaça o minúsculo céu privado. Além das fronteiras, estende-se uma região de
terror onde as pessoas são muito feias, sujas e invejosas. Em plena era da
globalização, os meninos já não pertencem a lugar algum, mas o que menos lugar
têm são os que mais coisas têm: eles crescem sem raízes, despojados de
identidade cultural e sem outro sentido social que a certeza de ser a realidade
um perigo. Sua pátria está nas marcas de prestígio universal, que lhes destacam
as roupas e tudo o que usam, e sua linguagem é a linguagem dos códigos
eletrônicos internacionais. Nas mais diversas cidades, nos mais distantes
lugares do mundo, os filhos do privilégio se parecem entre si, nos costumes e
tendências, como entre si se parecem os shopping centers e os
aeroportos, que estão fora do tempo e do espaço. Educados na realidade virtual,
deseducam-se da realidade real, que ignoram ou que tão-só existe para ser
temida ou ser comprada.
Fastfood,
fast cars, fast life: Desde que nascem, os meninos
ricos são treinados para o consumo e para a fugacidade e passam a infância
acreditando que as máquinas são mais confiáveis do que os homens. Chegando a
hora do ritual de iniciação, ganharão seu primeiro jipão “fora de estrada”, com
tração nas quatro rodas, mas durante os anos de espera eles se lançam a toda
velocidade nas autopistas cibernéticas e confirmam sua identidade devorando
imagens e mercadorias, fazendo zapping e fazendo shopping. Os
cibermeninos viajam pelo ciberespaço com a mesma desenvoltura com que os
meninos abandonados perambulam pelas ruas das cidades.
Muito
antes dos meninos ricos deixarem de ser meninos e descobrirem as drogas caras
que mascaram a solidão e o medo, já estão os meninos pobres aspirando gasolina
e cola de sapateiro. Enquanto os meninos ricos brincam de guerra com balas de
raios laser, os meninos de rua são ameaçados pelas balas de chumbo.
Na
América Latina, crianças e adolescentes soma quase a metade da população total.
A metade dessa metade vive na miséria. Sobreviventes: na América Latina, a cada
hora, cem crianças morrem de fome ou doença curável, mas há cada vez mais
crianças pobres em ruas e campos dessa região que fabricam pobres e proíbe a
pobreza. Crianças são, em sua maioria, os pobres; e pobres são, em sua maioria,
as crianças. E entre todos os reféns do sistema, são elas que vivem em pior
condição. A sociedade as espreme, vigia, castiga e às vezes mata: quase nunca
as escuta, jamais as compreende.
Esses
meninos, filhos de gente que só trabalha de vez em quando ou que não tem
trabalho nem lugar no mundo, são obrigados, desde cedo, a aceitar qualquer tipo
de ganha-pão, extenuando-se em troca de comida ou de pouco mais, em todos os
rincões do mapa do mundo. Depois de aprender a caminhar, aprendem quais são as
recompensas que se dão aos pobres que se portam bem: eles, e elas, são a
mão-de-obra gratuita das fabriquetas, das lojinhas e das biroscas caseiras, ou
são a mão-de-obra a preço de banana de indústrias de exportação que fabricam
trajes esportivos para as grandes empresas internacionais. Trabalham nas lidas
agrícolas e nos carregamentos urbanos, ou trabalham em suas casas para quem
mande ali. São escravinhos e escravinhas da economia familiar ou do setor
informal da economia globalizada, onde ocupam o escalão mais baixo da população
ativa a serviço do mercado mundial:
Nos
lixões da cidade do México, Manila ou Lagos, juntam, garrafas, latas e papéis,
e disputam restos de comida com os urubus; mergulham no Mara de Java em busca
de pérolas; catam diamantes nas minas do Congo; são as toupeiras nas galerias
das minas do Peru, imprescindíveis por causa da pequena estatura, e quando seus
pulmões deixam de funcionar são enterrados em cemitérios clandestinos; colhem
café na Colômbia e na Tanzânia e se envenenam cós os pesticidas; envenenam-se
com os pesticidas nas plantações de algodão da Guatemala e nas bananeiras de
Honduras; na Malásia recolhem o látex das árvores do caucho, em jornadas de
trabalho que vão de estrela a estrela; deitam trilhos ferroviários na Birmânia;
ao norte da Índia se derretem nos fornos de vidro e ao sul nos fornos de
tijolos; em Bangladesh têm mais de trezentas ocupações diferentes, com salários
que oscilam entre o nada e o quase nada por cada dia que nunca acaba; correm
corridas de camelos para os emires árabes e são ginetes campeiros nas estâncias
do Rio da Prata; em Porto Príncipe, Colombo, Jakarta ou Recife servem as
refeições do amo, em troca do direito de comer o que cai na mesa; vendem frutas
nos mercados de Bogotá e chicletes nos ônibus de São Paulo; limpam pára-brisas
nas esquinas de Lima, Quito ou São Salvador; lustram sapatos nas ruas de
Caracas ou Guanajuato; costuram roupas na Tailândia e chuteiras no Vietnã;
costuram bolas de futebol no Paquistão e bolas de beisebol em Honduras no
Haiti; para pagar as dividas de seus pais, colhem chá e tabaco nas plantações
do Sri Lanka e jasmins no Egito, destinados à perfumaria francesa; alugados
pelos pais, tecem tapetes no Irã, no Nepal e na Índia, desde antes do amanhecer
até depois da meia-noite, e quando alguém chega para resgata-los, perguntam:
“Você é meu novo amo?”; vendidos a cem dólares pelos pais, oferecem-se no Sudão
para prazeres sexuais ou qualquer trabalho.
À força recrutam meninos os exércitos
em alguns lugares da África, Oriente Médio e América Latina. Nas guerras, os
soldadinhos trabalham matando e, sobretudo, trabalham morrendo: eles somam a
metade das vítimas nas recentes guerras africanas. Com exceção da guerra, que é
coisa de machos segundo ensinam a tradição e a realidade, em quase todas as
demais tarefas os braços das meninas são tão úteis quanto os braços dos
meninos. Mas o mercado de trabalho, para as meninas, reincide na discriminação
que normalmente pratica contra as mulheres: elas, as meninas, sempre ganham
menos do que o pouquíssimo que eles, os meninos, ganham, quando ganham.
No
mundo todo, a prostituição é o destino precoce de muitas meninas e, em menor
grau, também dos meninos. Por incrível que pareça, calcula-se que há pelo menos
cem mil prostitutas infantis nos Estados Unidos, segundo informe da UNICEF de
1997. Mas é nos bordéis e nas ruas do sul do mundo que trabalha a esmagadora
maioria das vítimas infantis do comércio sexual. Esta multimilionária
indústria, vasta rede de traficantes, intermediários, agentes turísticos e
proxenetas, age com escandalosa impunidade. Na América Latina, não há nada de
novo: a prostituição infantil existe desde que, em 1536, inaugurou-se a
primeira casa de tolerância em Porto Rico. Atualmente, meio milhão de
meninas brasileiras trabalha vendendo o corpo, em benefício de adultos que as
exploram: tantas como na Tailândia, não tantas como na Índia. Em algumas praias
do Mar do Caribe, a próspera indústria do turismo sexual oferece meninas
virgens a quem possa pagar. A cada ano aumenta o número de meninas lançadas no
mercado de consumo: segundo as estimativas dos organismos internacionais, pelo
menos um milhão de meninas se acrescentam, anualmente, à oferta mundial de
corpos.
São
incontáveis os meninos pobres que trabalham, em suas casas ou fora delas, para
a família ou qualquer um. A maioria trabalha ao arrepio da lei e das
estatísticas. E os demais meninos pobres? Dos demais, são muitos os que sobram.
O mercado não precisa deles, não precisará jamais. Não são rentáveis, jamais o
serão. Do ponto de vista da ordem estabelecida, eles começam roubando o ar que
respiram e depois roubam tudo o que encontram: a fome e as balas costumam lhes
abreviar a viagem do berço à sepultura. O mesmo sistema produtivo que despreza
os velhos, teme os meninos. A velhice é um fracasso, a infância um perigo. Há
cada vez mais meninos marginalizados que, no dizer de alguns especialistas, nascem
com tendências ao crime. Eles integram o setor mais ameaçador dos
excedentes populacionais. O menino como perigo público, a conduta
anti-social do menor na América, tem sido há muitos anos o tema recorrente
dos congressos pan-americanos sobre a infância. Os meninos que vêm do campo
para a cidade e os meninos pobres em geral são de conduta potencialmente
anti-social, segundo nos alertam os congressos desde 1963. Essa obsessão a
respeito dos meninos doentes de violência, orientados para o vício e a
perdição, é compartilhada pelos governos e alguns entendidos no assunto. Cada niño
contém uma possível corrente do El Niño e é preciso prevenir a
devastação que pode provocar. No Primeiro Congresso Policial Sul-Americano,
celebrado em Montevidéo em 1979, a polícia colombiana explicou que “o aumento
sempre crescente da população com menos de dezoito anos induz à estimativa de
maior população POTENCIALMENTE DELIQUENTE.” (Maiúsculas no documento original).
Nos
países latino-americanos, a hegemonia do mercado está rompendo os laços da
solidariedade e fazendo em pedaços o tecido social comunitário. Que destino tem
os joões-ninguém, os donos de nada, em países onde o direito de propriedade já
se torna o único direito? E os filhos dos joões-ninguém? Muitos deles, cada vez
mais numerosos, são compelidos pela fome ao roubo, à mendicidade e à
prostituição. A sociedade de consumo os insulta oferecendo o que nega. E eles
se lançam aos assaltos, bando de desesperados unidos pela certeza de que a
morte os espera: segundo a UNICEF, em 1995 havia oito milhões de meninos
abandonados, meninos de rua, nas grandes cidades latino-americanas. Segundo a
organização Human Rights Watch, em 1993 os esquadrões parapoliciais
assassinaram seis meninos por dia na Colômbia e quatro por dia no Brasil.
Entre
uma ponta e outra, o meio. Entre os meninos que vivem prisioneiros da opulência
e os que vivem prisioneiros do desamparo, estão aqueles que têm muito mais do
que nada, mas muito menos do que tudo. Cada vez são menos livres dos meninos de
classe média. “Que te deixem ser ou não te deixem ser: esta é a questão”, disse
Chumy Chúmez, humorista espanhol. Dia após dia a liberdade desses meninos é
confiscada pela sociedade que sacraliza a ordem ao mesmo tempo em que gera a
desordem. O medo do meio: o piso range sob os pés, já não há garantias, a
estabilidade é instável, evaporam-se os empregos, esfuma-se o dinheiro, chegar
ao fim do mês é uma façanha. Bem-vinda, classe média, saúda um cartaz na
entrada de um dos bairros mais miseráveis de Buenos Aires. A classe média
continua vivendo num estado de impostura, fingindo que cumpre as leis e
acredita nelas e simulando ter mais do que tem, mas nunca lhe foi tão difícil cumprir
esta abnegada tradição. Está asfixiada pelas dívidas e paralisada pelo pânico,
e no pânico cria seus filhos. Pânico de viver, pânico de empobrecer; pânico de
perder o emprego, o carro, a casa, as coisas, pânico de não chegar a ter o que
se deve ter para chegar a ser. No clamor coletivo pela segurança pública,
ameaçada pelos monstros do delito que espreitam, é a classe média que grita
mais alto. Defende a ordem como se fosse sua proprietária, embora seja apenas
uma inquilina atropelada pelo preço do aluguel e pela ameaça de despejo.
Apanhados
nas armadilhas do pânico, os meninos de classe média estão cada vez mais
condenados à humilhação da reclusão perpétua. Na cidade do futuro, que já está
sendo do presente, os telemeninos, vigiados por babás eletrônicas, contemplarão
a rua de alguma janela de suas telecasas: a rua proibida pela violência ou pelo
pânico da violência, a rua onde ocorre o sempre perigoso e às vezes prodigioso
espetáculo da vida.
Pós-Doutorando pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ); Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Maringá (PGE-UEM); Pesquisador do Grupo de Estudos Urbanos (GEUR/UEM) e do Observatório das Metrópoles (UFRJ e UEM). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná (IFPR); Consultor da UNESCO/MEC; Conselheiro no Conselho Municipal de Planejamento e Gestão Territorial (CMPGT) de Maringá (PR) e Delegado da Assembléia de Planejamento e Gestão Territorial 5 (APGT-5) de Maringá (PR).
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