segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Educação em Direitos Humanos: de que se trata?*
Maria
Victoria Benevides**
A
Educação em Direitos Humanos parte de três pontos essenciais: primeiro, é uma
educação de natureza permanente, continuada e global. Segundo, é uma educação
necessariamente voltada para a mudança, e terceiro, é uma inculcação de
valores, para atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente
transmissora de conhecimentos. Acrescente-se, ainda, e não menos importante,
que ou esta educação é compartilhada por aqueles que estão envolvidos no
processo educacional – os educadores e os educandos - ou ela não será educação
e muito menos educação em direitos humanos. Tais pontos são premissas: a
educação continuada, a educação para a mudança e a educação compreensiva, no
sentido de ser compartilhada e de atingir tanto a razão quanto a emoção.
O
que significa dizer que queremos trabalhar com Educação em Direitos Humanos? A
Educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma cultura de
respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da
liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da
tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar,
influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes,
hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais
citados – os quais devem se transformar em práticas.
Quando
falamos em cultura, é importante deixar claro que não estamos nos limitando a
uma visão tradicional de cultura como conservação: dos costumes, das tradições,
das crenças e dos valores. Pelo contrário, quando falamos em formação de uma
cultura de respeito aos direitos humanos, à dignidade humana, estamos
enfatizando, sobretudo no caso brasileiro, uma necessidade radical de mudança.
Assim, falamos em cultura nos termos da mudança cultural, uma mudança que possa
realmente mexer com o que está mais enraizado nas mentalidades, muitas vezes
marcadas por preconceitos, por discriminação, pela não aceitação dos direitos
de todos, pela não aceitação da diferença. Trata-se, portanto, de uma mudança
cultural especialmente importante no Brasil, pois implica a derrocada de
valores e costumes arraigados entre nós, decorrentes de vários fatores
historicamente definidos: nosso longo período de escravidão, que significou
exatamente a violação de todos os princípios de respeito à dignidade da pessoa
humana, a começar pelo direito à vida; nossa política oligárquica e
patrimonial; nosso sistema de ensino autoritário, elitista, e com uma
preocupação muito mais voltada para a moral privada do que para a ética
pública; nossa complacência com a corrupção, dos governantes e das elites,
assim como em relação aos privilégios concedidos aos cidadãos ditos de primeira
classe ou acima de qualquer suspeita; nosso descaso com a violência, quando ela
é exercida exclusivamente contra os pobres e os socialmente discriminados;
nossas práticas religiosas essencialmente ligadas ao valor da caridade em
detrimento do valor da justiça; nosso sistema familiar patriarcal e machista;
nossa sociedade racista e preconceituosa contra todos os considerados
diferentes; nosso desinteresse pela participação cidadã e pelo associativismo
solidário; nosso individualismo consumista, decorrente de uma falsa idéia de
“modernidade”.
A
mudança cultural necessária deve levar ao enfrentamento de tal herança e ainda
ser instrumento de reação a duas grandes deturpações que fermentam em nosso
meio social - como parte de uma certa “cultura política”- em relação ao
entendimento do que sejam direitos humanos. A primeira delas, muito comentada
atualmente e bastante difundida na sociedade, inclusive entre as classes
populares, refere-se à identificação entre direitos humanos e direitos da
marginalidade, ou seja, são vistos como “direitos dos bandidos contra os
direitos das pessoas de bem”. Essa deturpação decorre certamente da ignorância
e da desinformação mas também de uma perversa e eficiente manipulação,
sobretudo nos meios de comunicação de massa, como ocorre com certos programas
de rádio e televisão, voltados para a exploração sensacionalista da violência e
da miséria humana. A segunda deturpação, evidente nos meios de maior nível de
instrução (meio acadêmico, mas também de políticos e empresários), refere-se à
crença de que direitos humanos se reduzem essencialmente às liberdades
individuais do liberalismo clássico e, portanto, não se consideram como
direitos fundamentais os direitos sociais, os direitos de solidariedade
universal. Nesse sentido, os liberais adeptos dessa crença aceitam a defesa dos
direitos humanos como direitos civis e políticos, direitos individuais à
segurança e à propriedade; mas não aceitam a legitimidade da reivindicação, em
nome dos direitos humanos, dos direitos econômicos e sociais, a serem
usufruídos individual ou coletivamente, ou seja, aqueles vinculados ao mundo do
trabalho, à educação, à saúde, à previdência e seguridade social etc.
Com
tal quadro histórico e com tais deturpações - muitas vezes conscientes e
deliberadas, de grupos ou pessoas interessadas em desmoralizar a luta pelos
direitos humanos, porque querem manter seus privilégios ou porque querem
controlar e usar a violência, sobretudo a institucional, apenas contra os
pobres, contra aqueles considerados “classes perigosas”- reafirmamos que uma
educação em direitos humanos só pode ser uma educação para a mudança, e não
para a conservação. Embora insistamos na ideia de cultura, trata-se da criação
de uma nova cultura de respeito à dignidade humana; portanto, o termo cultura
só tem sentido como mudança cultural.
Esse
quadro bastante negativo sobre a realidade histórica e contemporânea do Brasil
não deve ser um empecilho para o nosso trabalho; pelo contrário, deve ser
incentivo para procurar mudar. Podemos ser razoavelmente otimistas, pois já
existem várias iniciativas de grupos de defesa de direitos humanos, no sistema
de ensino público e privado, nos movimentos sociais e nas ONGs em geral –
inclusive a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos que patrocina este
encontro – além dos órgãos oficiais, como no caso da Secretaria de Justiça e
Defesa da Cidadania no Estado de São Paulo. Portanto, ser a favor de uma
educação que significa a formação de uma cultura de respeito à dignidade da
pessoa humana, significa querer uma mudança cultural, que se dará através de um
processo educativo. Significa essencialmente que queremos outra sociedade, que
não estamos satisfeitos com os valores que embasam esta sociedade e queremos
outros.
Como
a minha fala é introdutória a este Seminário, cumpre lembrar o que são direitos
humanos. São aqueles direitos considerados fundamentais a todos os seres humanos,
sem quaisquer distinções de sexo, nacionalidade, etnia, cor da pele, faixa
etária, classe social, profissão, condição de saúde física e mental, opinião
política, religião, nível de instrução e julgamento moral.
Uma
compreensão histórica de direitos humanos traz como eixo principal e óbvio o
reconhecimento do direito à vida, sem o qual todos os demais direitos perdem o
sentido. Costuma-se falar, apenas por uma questão didática, em gerações de
direitos humanos; não se trata de gerações no sentido biológico, do que nasce,
cresce e morre, mas no sentido histórico, de uma superação com
complementaridade, e que pode também ser entendida como uma dimensão. A
primeira geração, contemporânea das revoluções burguesas do final do século 18
e de todo o século 19, é a dos direitos civis e das liberdades individuais,
liberdades consagradas pelo liberalismo, quando o direito do cidadão dirige-se
contra a opressão do Estado ou de poderes arbitrários, contra as perseguições
políticas e religiosas, a liberdade de viver sem medo. Dessa importantíssima
primeira geração, ou dimensão, são os direitos de locomoção, de propriedade, de
segurança e integridade física, de justiça, expressão e opinião. Tais
liberdades surgem oficialmente nas Declarações de Direitos, documentos das revoluções
burguesas do final do século 18 (na França e nos Estados Unidos) e foram
acolhidas em diversas Constituições do século 19. A segunda geração, que não
abrange apenas os indivíduos, mas os grupos sociais, surge no início do século
20 na esteira das lutas operárias e do pensamento socialista na Europa
Ocidental, explicitando-se, na prática, nas experiências da social-democracia,
para consolidar-se, ao longo do século, nas formas do Estado do Bem Estar
Social. Refere-se ao conjunto dos direitos sociais, econômicos e culturais: os
de caráter trabalhista, como salário justo, férias, previdência e seguridade
social e os de caráter social mais geral, independentemente de vínculo
empregatício, como saúde, educação, habitação, acesso aos bens culturais etc. Em
complemento às duas gerações, a terceira dimensão inclui os direitos coletivos
da humanidade, como direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos
povos, ao patrimônio científico, tecnológico e cultural da humanidade, ao meio
ambiente ecologicamente preservado; são os direitos ditos de solidariedade
planetária. Tais gerações mostram como continua viva a bandeira da revolução
francesa: a liberdade, a igualdade e a solidariedade. A liberdade nos primeiros
direitos civis e individuais, a igualdade nos direitos sociais, a solidariedade
como responsabilidade social pelos mais fracos e em relação aos direitos da
humanidade.
Direitos
humanos são fundamentais porque são indispensáveis para a vida com dignidade.
Quando insistimos nessa questão da dignidade, muitas vezes esbarramos numa
certa incompreensão, como se o termo fosse indefinível e tratasse de algo
extremamente abstrato em relação à concretude do ser humano. Portanto, é
importante tentar esclarecer o que entendemos por dignidade da pessoa humana.
Sabemos, sem dúvida, identificar um comportamento indigno; por exemplo, omissão
de socorro nos hospitais, abandono dos idosos na fila do INPS, desprezo pelos
direitos dos mendigos, das crianças de rua, dos desempregados, dos excluídos de
toda sorte, são indignidades.
Mas
de onde vem esta ideia de dignidade? Porque ela é central no nosso processo
educativo?
Durante
muito tempo o fundamento da concepção de dignidade podia ser buscado na esfera
sobrenatural da revelação religiosa, da criação divina – o ser humano criado à
imagem e semelhança do Criador. Ou, então, numa abstração metafísica sobre
aquilo que seria próprio da natureza humana, o que sempre levou a discussões
filosóficas sobre a essência da natureza humana. Independentemente dessas
polêmicas, aqueles que são religiosos ou espiritualistas têm um motivo a mais
para se preocupar com a dignidade da pessoa humana, se acreditam na criação
divina, na afirmação de que todos somos irmãos, nessa fraternidade que vem da
religião, como no caso, dentre outros, do cristianismo. Hoje, numa visão mais
contemporânea, percebemos como todos os textos nacionais e internacionais de
defesa dos direitos humanos explicam a dignidade pela própria transcendência do
ser humano, ou seja, foi o homem que criou ele mesmo o Direito. Ele mesmo criou
as formas da ideia de dignidade em grandes textos normativos que podem ser
sintetizados no artigo 1º da Declaração Internacional de
Direitos Humanos de 1948: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e em direitos”. Esta formulação decorre da própria reflexão do ser
humano que a ela chegou de uma maneira que é historicamente dada.
Foi
uma grande revolução no pensamento e na história da humanidade chegar à
reflexão conclusiva de que todos os seres humanos detêm a mesma dignidade. É
evidente que nos regimes que praticam a escravidão, ou qualquer tipo de
discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos e étnicos não vigora
tal compreensão da dignidade universal, pois neles a dignidade é entendida como
um atributo de apenas alguns, aqueles que pertençam a um determinado grupo.
A
dignidade do ser humano não repousa apenas na racionalidade; no processo
educativo procuramos atingir a razão, mas também a emoção, isto é, corações e
mentes – pois o homem não é apenas um ser que pensa e raciocina, mas que chora
e que ri, que é capaz de amar e de odiar, que é capaz de sentir indignação e enternecimento,
que é capaz da criação estética. Unamuno dizia que o que mais nos diferencia
dos outros animais é o sentimento, e não a racionalidade. O homem é um ser
essencialmente moral, ou seja, o seu comportamento racional estará sempre
sujeito a juízos sobre o bem e o mal. Nenhum outro ser no mundo pode ser assim
apreciado em termos de dever ser, da sua bondade ou da sua maldade. Portanto, o
ser humano tem a sua dignidade explicitada através de características que são
únicas e exclusivas da pessoa humana; além da liberdade como fonte da vida
ética, só o ser humano é dotado de vontade, de preferências valorativas, de
autonomia, de auto-consciência como o oposto da alienação. Só o ser humano tem
a memória e a consciência de sua própria subjetividade, de sua própria história
no tempo e no espaço e se enxerga como um sujeito no mundo, vivente e mortal.
Só o ser humano tem sociabilidade, somente ele pode desenvolver suas
virtualidades no sentido da cultura e do auto-aperfeiçoamento vivendo em
sociedade e expressando-se através daquelas qualidades eminentes do ser humano
como o amor, a razão e a criação estética, que são essencialmente
comunicativas. É o único ser histórico, pois é o único que vive em perpétua
transformação pela memória do passado e pelo projeto do futuro. Sua unidade
existencial significa que o ser humano é único e insubstituível. Como dizia
Kant, é o único ser cuja existência é um valor absoluto, é um fim em si e não
um meio para outras coisas.
Os
direitos humanos são naturais e universais, pois
estão profundamente ligados à essência do ser humano, independentemente de
qualquer ato normativo, e valem para todos; são interdependentes e indivisíveis,
pois não podemos separá-los, aceitando apenas os direitos individuais, ou só os
sociais, ou só os de defesa ambiental.
Essa
indivisibilidade é importante porque temos exemplos históricos, também no
século XX, de regimes políticos que valorizaram exclusivamente os direitos
sociais, como o regime soviético, em detrimento da liberdade; assim como temos vários
regimes liberais que pregam a liberdade mas descartam a obrigatoriedade dos
direitos sociais.
Direitos
humanos são históricos, pois foram sendo reconhecidos e consagrados
em determinados momentos históricos, e é possível pensarmos que novos direitos
ainda podem ser identificados e consolidados. A história da humanidade comprova
a evolução da consciência dos direitos; na Bíblia, por exemplo, lemos casos de
aceitação de sacrifícios humanos e de escravidão. Os liberais da América, do
Norte e dos Sul, conviviam com a posse de escravos, embora defendessem a
liberdade e a igualdade de todos diante da lei. Direitos humanos são históricos
na medida em que vão crescendo em abrangência e em profundidade, até que se
consolidem na consciência universal. Hoje, por exemplo, reconhecemos que existe
consciência universal de que a escravidão, seja por que motivo for, é uma
violação radical dos direitos humanos, assim como a exploração do trabalho
infantil, a dominação sobre as mulheres, as formas variadas de racismo e de
discriminação por motivos religiosos, políticos, étnicos, sexuais etc. Os casos
ainda existentes de escravidão, racismo e discriminação são veementemente
condenados pelas entidades mundiais de defesa dos direitos humanos.
Quando
falamos em educação em direitos humanos falamos também em educação para a
cidadania. É preciso entender aqui que as duas propostas andam muito juntas,
mas não são sinônimos. Basta lembrar, por exemplo, que todos os projetos
oficiais, do Ministério da Educação às Secretarias Municipais e Estaduais
afirmam que seu objetivo principal é a educação para a cidadania. No entanto, a
concepção e as experiências são tão diferentes, em função de prefeituras e de
governos, que o conceito de cidadania foi se esgarçando, não se tem certeza de
que se fala sobre o mesmo tema. É bastante comum a idéia de educação para
cidadania ser entendida como se fosse meramente uma educação moral e cívica. Ou
seja, como se fosse necessário e suficiente pregar o culto à pátria, seus
símbolos, heróis e datas históricas, assim como fomentar um nacionalismo ora
ingênuo ora agressivo, sem a percepção de que a nação não é um todo homogêneo,
mas um todo heterogêneo, com conflitos, classes sociais, grupos e interesses
diferenciados.
Portanto,
a ideia de educação para a cidadania não pode partir de uma visão da sociedade
homogênea, como uma grande comunidade, nem permanecer no nível do civismo
nacionalista. Torna-se necessário entender educação para a cidadania como
formação do cidadão participativo e solidário, consciente de seus deveres e
direitos – e, então, associá-la à educação em direitos humanos. Só assim
teremos uma base para uma visão mais global do que seja uma educação
democrática, que é, afinal, o que desejamos com a educação em direitos humanos,
entendendo “democracia” no sentido mais radical – radical no sentido de raízes
– ou seja, como o regime da soberania popular com pleno respeito aos direitos
humanos. Não existe democracia sem direitos humanos, assim como não existe
direitos humanos sem a prática da democracia. Em decorrência, podemos afirmar o
que já vem sendo discutido em certos meios jurídicos como a quarta geração, ou
dimensão, dos direitos humanos: o direito da humanidade à democracia.
É
nesse sentido que nos referimos sempre à cidadania democrática. Existem casos
de regimes políticos que levaram ao extremo a educação para a cidadania, em
termos de mobilização cívica, mas não em termos de cidadania democrática.
Regimes totalitários levaram ao extremo a formação do cidadão ligado à pátria,
à nação, ao seu passado histórico, ao projeto do futuro. Aliás, regimes
totalitários são aqueles que mais mobilizam os cidadãos para um tipo de
educação cívica que não tem nada a ver com educação em direitos humanos, com
educação democrática. Em meados do século XX regimes totalitários formaram
cidadãos participantes, conscientes de uma missão cívica, porém cidadãos
fascistas, nazistas, ou seja, cidadãos de um determinado regime que não era
democrático. Portanto, nossa ideia de cidadania insere-se exclusivamente no quadro
da democracia.
Em
relação especificamente à educação em direitos humanos, o que desejamos? Que
efeitos queremos com esse processo educativo? Queremos uma formação que leve em
conta algumas premissas. Em primeiro lugar, o aprendizado deve estar ligado à
vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos e deve
propiciar o desenvolvimento de sentimentos e atitudes de cooperação e
solidariedade. Ao mesmo tempo, a educação para a tolerância se impõe como um
valor ativo vinculado à solidariedade e não apenas como tolerância passiva da
mera aceitação do outro, com o qual pode-se não estar solidário. Em seguida, o
aprendizado deve levar ao desenvolvimento da capacidade de se perceber as
conseqüências pessoais e sociais de cada escolha. Ou seja, deve levar ao senso
de responsabilidade. Esse processo educativo deve, ainda, visar à formação do
cidadão participante, crítico, responsável e comprometido com a mudança
daquelas práticas e condições da sociedade que violam ou negam os direitos
humanos. Mais ainda, deve visar à formação de personalidades autônomas,
intelectual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de
julgar, escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que
não apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e
cumpridos.
Uma
questão que surge com muita frequência quando debatemos o tema da educação em
direitos humanos é: será realisticamente possível educar em direitos humanos? A
questão tem pertinência, pois se trata, sem dúvida, de um processo extremamente
complexo, difícil e a longo prazo. O educador em direitos humanos na escola,
por exemplo, sabe que não terá resultados no final do ano, como ao ensinar uma
matéria que será completada a medida que o conjunto daquele programa for bem
entendido e avaliado pelos alunos. Trata-se de uma educação permanente e
global, complexa e difícil, mas não impossível. É certamente uma utopia, mas
que se realiza na própria tentativa de realizá-la, como afirma o educador Perez
Aguirre, enfatizando que os direitos humanos terão sempre, nas sociedades
contemporâneas, a dupla função de ser, ao mesmo tempo, crítica e utopia frente
à realidade social.
O
que será indispensável para este processo educativo, partindo-se da constatação
de que, apesar das dificuldades, é possível desenvolver um processo educativo
em direitos humanos?
Em
primeiro lugar, o conhecimento dos direitos humanos, das suas garantias, das
suas instituições de defesa e promoção, das declarações oficiais, de âmbito
nacional e internacional, com a consciência de que os direitos humanos não são
neutros, não são meramente declamações retóricas. Eles exigem certas atitudes e
repelem outras. Portanto, exigem também uma vivência compartilhada. A palavra
deverá sempre estar ligada a práticas, embasadas nos valores dos direitos
humanos e na realidade social. Na escola, por exemplo, deverá estar vinculada à
realidade concreta dos alunos, dos professores, dos diretores, dos
funcionários, da comunidade que a cerca.
Onde
podemos educar em direitos humanos? Temos várias opções, com diferentes
veículos e estruturas educacionais. Podemos fazer uma escolha, dependendo dos
recursos e das condições objetivas, sociais, locais e institucionais, de cada
grupo, de cada entidade. Há que distinguir entre as possibilidades da educação
formal e da educação informal. Na educação formal, a formação em direitos
humanos será feita no sistema de ensino, desde a escola primária até a
universidade. Na educação informal, será feita através dos movimentos sociais e
populares, das diversas organizações não-governamentais – ONGs – , dos
sindicatos, dos partidos, das associações, das igrejas, dos meios artísticos,
e, muito especialmente, através dos meios de comunicação de massa, sobretudo a
televisão.
Cumpre
lembrar que esta educação formal na escola, desde a primária até a universidade
e principalmente no sistema público do ensino, resultará mais viável se contar
com o apoio dos órgãos oficiais, tanto ligados diretamente à educação como
ligados à cultura, à justiça e defesa da cidadania. É por isso que valorizamos
os planos oficiais, de educação em direitos humanos na escola, tanto no nível
federal como nos níveis estadual e municipal – embora nem sempre vejamos seus
resultados ou mesmo sua aplicação no quotidiano escolar. Se escolhemos a
educação formal, constatamos como a escola pública é um locus privilegiado
pois, por sua própria natureza, tende a promover um espírito mais igualitário,
na medida em que os alunos, normalmente separados por barreiras de origem
social, aí convivem. Na escola pública o diferente tende a ser mais visível e a
vivência da igualdade, da tolerância e da solidariedade impõe-se com maior
vigor. O objetivo maior desta educação na escola é fundamentar o espaço escolar
como uma verdadeira esfera pública democrática.
Finalmente,
quais seriam os pontos principais do conteúdo da educação em direitos humanos?
Há um conteúdo óbvio, que decorre da própria definição de direitos humanos e do
conhecimento sobre as gerações ou dimensões históricas, sobre as possibilidades
de reivindicação e de garantias etc. Este conteúdo deve estar efetivamente
vinculado a uma noção de direitos, mas também de deveres, estes decorrentes das
obrigações do cidadão e de seu compromisso com a solidariedade. É importante,
ainda, que sejam mostradas as razões e as consequências da obediência a normas
e regras de convivência. Em seguida, este conteúdo deve conter a discussão –
para a vivência – dos grandes valores da ética republicana e da ética
democrática. Os valores da ética republicana incluem o respeito às leis
legitimamente elaboradas, a prioridade do bem público acima dos interesses
pessoais ou grupais, e a noção da responsabilidade, ou seja, de prestação de
contas de nossos atos como cidadãos. Por sua vez, os valores democráticos estão
profundamente vinculados ao conjunto dos direitos humanos, os quais se resumem
no valor da igualdade, no valor da liberdade e no valor da solidariedade.
Nas
palestras seguintes está previsto um detalhamento sobre o encaminhamento
metodológico desses fundamentos; mas é preciso deixar claro que o componente
essencial ao escolhermos trabalhar na escola com um programa de direitos
humanos é que ele será impossível se não estiver associado a práticas
democráticas. Um grande educador como o Prof. José Mario Pires Azanha enfatiza,
com o rigor de sempre, que de nada adiantará levar programas de direitos
humanos para a escola, se a própria escola não é democrática na sua relação de
respeito com os alunos, com os pais, com os professores, com os funcionários e
com a comunidade que a cerca.
É
nesse sentido que um programa de direitos humanos introduzido na escola serve,
também, para questionar e enfrentar as suas próprias contradições e os
conflitos no seu cotidiano.
Muito
obrigada.
* Palestra
de abertura do Seminário de Educação em Direitos Humanos, São Paulo,
18/02/2000. A autora agradece a importante contribuição do Prof. Fábio Konder
Comparato.
** Professora
de Sociologia da Faculdade de Educação da USP e vice-coordenadora da Rede
Brasileira de Educação em Direitos Humanos.
Pós-Doutorando pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ); Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Maringá (PGE-UEM); Pesquisador do Grupo de Estudos Urbanos (GEUR/UEM) e do Observatório das Metrópoles (UFRJ e UEM). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná (IFPR); Consultor da UNESCO/MEC; Conselheiro no Conselho Municipal de Planejamento e Gestão Territorial (CMPGT) de Maringá (PR) e Delegado da Assembléia de Planejamento e Gestão Territorial 5 (APGT-5) de Maringá (PR).
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