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José Pacheco Educador e criador da Escola da Ponte, em Portugal Fonte: Folha de Londrina |
"Quais são os afluentes da margem esquerda do Rio Negro? Quais os nomes dos titulares das capitanias hereditárias? Qual a fórmula para calcular o volume da esfera?".
Estas foram algumas das perguntas feitas pelo educador português José Pacheco, criador da Escola da Ponte, a uma plateia formada basicamente de professores na semana passada em Astorga (Região Metropolitana de Maringá). Ele esteve no município a convite da prefeitura e do Instituto Federal do Paraná para discutir as "Perspectivas de uma Escola Aberta em Astorga". A ausência de respostas para as perguntas - que como o pedagogo fez questão de frisar, estão relacionadas ao conteúdo da grade curricular do ensino fundamental - foi o argumento de Pacheco para corroborar sua tese de que o sistema de ensino tradicional, predominante no país, não ensina. Mais do que isso. Para o professor português, o modelo de escola a que estamos acostumados é incompatível com o desenvolvimento humano.
José Pacheco sabe o que diz. Em 1970, depois de cursar engenharia e render-se à paixão pela educação, fez a si mesmo a pergunta que todo professor deveria fazer: "Por que, por mais que eu me esforce, por mais que dê minhas aulas tão bem dadas, há alunos que não aprendem?". Quando ele percebeu que o problema não estava nele, mas nas aulas, arregaçou as mangas e criou uma escola em que elas não existem. Quatro décadas depois, esta escola tornou-se referência de um modelo baseado na autonomia de alunos e educadores, que vem comprovando sua eficácia por meio de ótimos resultados em índices de desenvolvimento humano e desenvolvimento educacional.
Na Escola da Ponte, instituição pública localizada a 30 quilômetros da cidade do Porto, o sistema não é baseado em seriação ou ciclos e os professores não são responsáveis por uma disciplina ou por uma turma específica. Os alunos definem suas áreas de interesse e desenvolvem projetos de pesquisa, tanto em grupo como individuais. Enquanto fazem o que gostam, absorvem conteúdos de física, matemática, língua portuguesa, história, geografia. Crianças e adolescentes aprendem o que tem que ser aprendido de forma prazerosa.
Por que o senhor considera o sistema de ensino tradicional obsoleto?
Basta ver o que está acontecendo. Já segui este modelo, e não tinha compreensão do que estava fazendo. Eu apenas reproduzia uma cultura. Será que somos tão cegos que não vemos que há 30 milhões de analfabetos - literais ou funcionais – no Brasil? Será que somos tão cegos que não vemos que as pessoas não sabem fazer raiz quadrada? A escola não ensina e o aluno não aprende. As carências de formação técnica no Brasil são terríveis, tanto que tem vindo gente do estrangeiro para tomar o lugar dos engenheiros brasileiros. Será que as pessoas não veem que este modelo não está funcionando? As escolas têm ótimos professores, mas os alunos estão desmotivados. São alunos do século 21 com professores do século 20 e modelo do século 19.
É possível que uma escola pública de ensino tradicional adote o sistema da Escola da Ponte?
É perfeitamente possível. Claro que não há um modelo único, cada escola é uma escola, assim como cada cidade é uma cidade. Acompanho cerca de 130 instituições no Brasil, a maior parte municipal ou estadual. O que fazemos nada mais é do que cumprir o projeto da escola e a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional. A escola que criamos é uma escola pública mais barata – cada aluno custa até 10 vezes menos – e ainda assim capaz de elevar o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). No município de Cotia o índice está em 4,2, enquanto no Projeto Âncora a nota do Ideb é 10 (o Âncora é uma Ong sediada em uma das comunidades mais pobres da cidade, que José Pacheco colabora diretamente desde 2011).
O que o senhor acha do modelo de ensino integral adotado no Estado?
O que existe no Paraná não é educação integral, é educação em tempo integral: metade do tempo é chatice, na outra metade são atividades como balé, capoeira, canto, música. Não é mau, mas penso que não se deve ter uma criança tanto tempo dentro da escola. A criança tem que viver outros espaços. A educação integral pode ser definida como aquela que não considera apenas as aprendizagens intelectuais, cognitivas. O ser humano também é emoção, é ética, estética, moral, físico, espiritual.
Qual o papel da família na educação?
A família deixou de educar. Hoje quem educa é a TV, as igrejas. E há uma incompatibilidade muito grande entre família e escola. Uma fica empurrando as responsabilidades para a outra. Todas as teses que leio dizem que a família tem que ser parceira da escola. É mentira – a escola e demais instituições é que têm que ser parceiras da família. É preciso restituir a capacidade de educar da família. Não pode haver delegação de poder à escola, ela não tem que fazer tudo. Escola tem que transmitir cultura e reproduzi-la. Ela é apenas um dos lugares onde se aprende.
Na Escola da Ponte, como é feito o diálogo com as famílias?
Nós criamos a figura do tutor, que é um professor que dialoga com as famílias a todo momento. Se o pai chega à escola às 10 da manhã, é neste horário que ele fala com o professor, porque na nossa escola não há horário, não há série, não há turma. Qualquer momento é um bom momento para falar com o pai ou com a mãe. Não há um dia, uma hora, que muitas vezes são marcados para quando os pais estão trabalhando. Não é assim, eles têm direito de participar. Há 40 anos os pais não iam à escola. Hoje são eles que dirigem a Escola da Ponte. O que nós fizemos foi criar ambientes de fraternidade e acolhimento, passamos a ir à casa deles. Esta deve ser uma relação de complementaridade, de respeito mútuo, que se pode criar a partir do pressuposto de que uma criança que não aprende na escola tem razões para não aprender.
Por que o senhor está focando seus trabalhos hoje no Brasil?
Porque é no Brasil que está surgindo a nova educação. Sei que está acontecendo aqui uma transformação educacional que nunca vi em outro país.
A que o senhor atribui esta transformação?
Em parte ao governo, à medida em que cria condições de mudança, mas também aos bons teóricos que temos no Brasil. Eles estão entre os melhores do mundo, e olha que conheço muito da produção teórica pelo mundo. Lauro de Oliveira Lima (já falecido) e Pedro Demo são alguns deles. Acabo de lançar um livro com 25 educadores brasileiros que o Brasil não conhece. Há também muitos bons professores, apesar da formação, que não é das melhores. Sinto que estão acontecendo mudanças no País, e eu gosto de jogar onde as coisas estão acontecendo. Se eu sinto que aquilo que participo tem boa fundamentação teórica e científica, que as crianças estão aprendendo mais, que estão mais felizes, só posso ficar para aprender e, dentro do que me for possível, ajudar.
O modelo de formação de professores que existe hoje no Brasil é capaz de capacitá-los para atuar em escolas com sistemas de ensino inovadores?
Acho que não, mas não generalizo, não posso dizer que toda formação existente no País está errada. Mas é preciso considerar que de um modo geral a formação que vem sendo feita não leva o professor a produzir mudanças. Apenas reproduz um modelo social do século 19. Penso que é preciso considerar três princípios na área da formação: o princípio do isomorfismo (o modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina); o princípio de que quase nunca a teoria vem antes da prática – é a prática de ensino, com suas dificuldades, e a procura de soluções, que justificam a contribuição teórica; e por fim, o princípio de que o professor não tem que ser objeto de formação, mas sim sujeito da formação, no contexto de uma equipe, participando de um projeto. Isto não é considerado na formação tradicional.
O senhor acredita que o Brasil terá uma mudança real na educação daqui a quanto tempo?
Diria que uns 30 anos, no máximo até meados do século. Mas já está acontecendo, e é isso que conta. Um grande caminho começa com um primeiro passo, e eu acho que o Brasil está encaminhado. Claro que ainda virão muitas dificuldades, não é algo fácil, as relações humanas são sempre conflituosas. Sempre enfrentei muito preconceito e muitos problemas. As histórias dos projetos que acompanho são sobretudo histórias de sofrimento.